Há sete meses no Brasil, trabalhando em um restaurante peruano de dono argentino na capital paulista, a venezuelana Eliza é mais uma entre as tantas figuras que dão vida ao sincretismo da cultura brasileira. Mas Eliza e seu irmão, a quem ajudou a emigrar para o País há três meses, também representam um fenômeno assustador: o êxodo venezuelano.
Desde 2015, 3 milhões de cidadãos abandonaram a Venezuela. Um em cada dez habitantes. Metade imigrou para Colômbia e Peru. O Brasil, que tem seu centro econômico longe da fronteira com a Venezuela e fala outro idioma, recebeu menos gente, mas mesmo assim um contingente considerável: 85 mil pessoas. Boa parte sem nada e disposta a morar na rua em Roraima. De acordo com um levantamento da FGV, 30% deles têm curso superior.
E a tendência é piorar. A ONU estima que o número de refugiados deve chegar a 5,3 milhões até o final deste ano. Quase 20% da população – um êxodo de proporções bíblicas. Tudo isso num país que detém as maiores reservas de petróleo do planeta (bem à frente da Arábia Saudita, a segunda colocada). Tudo isso numa nação que, até o início do século 21, tinha o maior PIB per capita da América do Sul, e que, na década de 1950, estava entre as quatro mais ricas do mundo. O que houve?
Claro que as ditaduras de Chaves (1999-2013) e de Maduro (desde 2013) estão no centro do problema. Mas a história é mais longa. Após a descoberta de petróleo na Venezuela, em 1922, o país viu uma sucessão de golpes e partidos políticos que buscavam abocanhar parte dos recursos gerados nos acordos com companhias estrangeiras. O que parecia resolvido com a democracia, implementada em 1958, e que se tornaria a mais longeva da América do Sul, durou pouco.
Em 1973, após o primeiro choque do petróleo, o país decidiu nacionalizar empresas petrolíferas, condensando tudo na gigante PDVSA. Com recursos do petróleo, o Estado adentrou na economia. Grandes empresários perceberam que, estando os recursos no governo, deveriam adaptar-se e produzir para o governo, não para os consumidores. E a população foi se tornando cada vez mais dependente do auxílio estatal.
Bom, petróleo e derivados respondem por 96% das exportações da Venezuela (no Brasil, por exemplo, são só 9%). O boom na cotação do barril, na década passada, sob o governo Chavez, fez ingressar na Venezuela mais de US$ 750 bilhões. Com controle total sobre a maior fonte de riqueza do país e achaques a empresários, Chavez aproveitou a bonança para expandir ainda mais a presença do Estado na economia.
Um em cada seis venezuelanos terá deixado seu país até o fim de 2019. Um êxodo de 5,3 milhões de pessoas.
Comprou da iniciativa privada o controle de siderúrgicas, bancos, indústrias de alimentos, fábricas de todo tipo. Entre 2008 e 2015, o setor privado recuou de 70% para 20% do total de bens de consumo providos no país. A torra de dinheiro colocou lá em cima o déficit público (ou seja, o tanto que o governo gasta a mais do que arrecada). O Brasil, que precisa de reformas para não quebrar, tem hoje um déficit de 7,5% do PIB. O da Venezuela chegou rapidamente a 16%.
Com os recursos públicos quase todos destinados a cobrir o déficit, começou a faltar dinheiro na joia da coroa, a PDVSA. A produção de petróleo implodiu, saindo de 3,2 milhões para 1,5 milhão de barris diários (menos que a Petrobras, que tira 2 milhões de barris/dia). Para piorar, a cotação do barril de petróleo saiu de US$ 103 em 2014 para US$ 35,7 em 2017. Com menos dólares entrando, o país empobreceu severamente: em 2012, eles importavam US$ 62 bilhões. Em 2018, foram só US$ 9,2 bilhões (o Brasil, para dar uma referência, importou US$ 180 bilhões no ano passado, com dólar em alta e tudo o mais).
Impressora de dinheiro
Para ter como pagar os salários dos funcionários públicos, o governo recorreu à mais imbecil das soluções: ligar as impressoras de dinheiro. Com mais moeda em circulação do que coisas para comprar, não deu outra: os preços inflaram. Em 2019, a inflação venezuelana deve passar dos 10 milhões por cento, segundo o FMI. Em meio a esse caos, a retração do PIB chegou a 13,7% em 2017; mais 15,4% em 2018. Hoje, nove em cada dez venezuelanos estão abaixo da linha da pobreza.
Nisso, o governo Maduro entrou em colapso. Sua última eleição foi declarada fraudulenta pelo Parlamento venezuelano. Juan Guaidó, o jovem líder da Assembleia, de 35 anos, declarou-se presidente interino da Venezuela em janeiro, e foi reconhecido como tal pelos EUA, pelos maiores países da Europa e por boa parte da América Latina (Brasil incluído, obviamente).
Mas falta combinar com os russos. A declaração de Guaidó não vale nada dentro da Venezuela, porque Maduro tem costas quentes. Com uma força militar e paramilitar bem armada, o ditador tem instrumentos para intimidar quem lhe faça oposição. Em 2008, Hugo Chávez distribuiu 100 mil fuzis para sua milícia. Em 2017, foi a vez de Maduro armar outros 500 mil. A milícia, uma espécie de SS implementada pelo chavismo, tem sido responsável por boa parte da repressão, e segue fiel ao líder chavista.
Os militares venezuelanos, que dão suporte a Maduro no poder, controlam 14 dos 32 ministérios, além de gerir a PDVSA, responsável por basicamente todas as receitas em dólar do país e, sem surpresa, de onde sai boa parte dos desvios de recursos públicos – de acordo com uma delação do banqueiro suíço Matthias Krull, só a família de Maduro desviou US$ 1,2 bilhão.
Além dos militares, Maduro possui ampla condescendência do Judiciário, o qual tratou de aparelhar ao longo de seu mandato. Ainda que enfrente oposição na Assembleia, como a do presidente da casa, há pouco ou nada que o Legislativo possa fazer tendo as mãos atadas pelos juízes.
Mantido o poder, Maduro enfrentaria novas eleições apenas em 2025, quando a Revolução Chavista completaria 27 anos. Se ainda estiver por lá, não restam dúvidas de que a Venezuela terá ensinado lições valiosas sobre como arruinar um país. (Matéria do MSN)
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